Terça-feira, 10 de Setembro de 2013

CARTAS DE AMOR, OU NÃO, DOS ANOS 60

 

No interior profundo do meu país e concretamente na minha terra as relações amorosas eram um tabú insondável com características originais que passavam pelo simples avistamento da “presa” ou pelo vencimento de barreiras de extractos sociais tão ténues como a herança esperada de três bocados de terra. A forma mais usual para a aproximação à desejada era a remessa de uma carta, que expedida, viajava mais do que o remetente alguma vez teria podido fazer. O pretendente razava a zona da pretendida a pé ou de bicicleta ( se a tivesse) para se sentir notado.

Não havia paixões ou corações despedaçados, mas apenas o natural desejo de acasalamento que qualquer animal faria sem necessidade de saber escrever.

Aqui, os famíliares, alertados pela requisição do namoro, faziam avaliações das conveniências, em função das perspectivas dos ganhos, anuindo ou não à sua aceitação.

Havia, porém, uns mais atrevidos e namoradeiros que outros. Porque mais desinibidos com atrevimento para a chalaça e natural simpatia que cativavam as moçoilas àvidas de conquistar homem.

Existiu um caso paradigmático, no meu tempo, que ainda hoje é recordado com admiração, que terá interpretado a lenda do Casa Nova que o cinema nos recriou.

Ao contrário do seu desejo, revelarei o seu nome, porque não se tratando de devassa da sua vida, é, pelo contrário, uma homenagem ao seu passado, sem conter comprometimento que envergonhe.

O meu primo ROMEU NUNES DA SILVA, homem de muitos afazeres na sua vida activa, hoje aposentado, viveu a sua juventude no meio rural da nossa terra no ambiente de pobreza generalizada que se vivia então. Viveu no seio de uma família com uma filosofia de vida que cultivava a sátira e a brincadeira jocosa que mantinha a sua vivência num plano que hoje poderiamos dizer de felicidade, mas naquele tempo, apenas de bem dispostos.

Ninguém era infeliz por trabalhar de sol a sol ou de comer couves todos os dias. Os domingos soltavam a alegria de viver com a sensação estranha de não ter que trabalhar.

Era a oportunidade de percorrer os caminhos em busca do diferente; amigos, bailaricos ou potenciais namoradas, para alimentar a alma rebelde.

Colecionou namoradas em muitos locais. Era brejeiro e atrevido e por onde passava deixava a sua marca vincada com alegria e boa disposição.

E não se limitou aos lugares da nossa freguesia e arredores. Ele viajava, a pé, para além do rio Zêzere, trepando montes e vales onde soubesse haver moças e bailes com quem se pudesse divertir.

Onde quer que aparecesse incutia alegria e boa disposição aos circunstantes.

Certo dia viajou, percorrendo a pé montes e vales, até à Varzea, terra longinqua para lá do rio Zêzere, onde conheceu uma jovem rapariga por quem sentiu atração.

Regressado a casa decide escrever-lhe  a tradicional carta  a pedir namoro.

A Moça, hoje seguramente respeitável senhora de cerca de 70 anos, respondeu-lhe   nos seguintes termos de forma objectiva lúcida e pragmática. O Romeu ainda hoje consegue recitar a carta sem falhar uma vírgula, porque pouco habituado a “tampas” lhe deixou marcas de macho rejeitado:

“Sr Romeu

Antes de mais apresento-lhe os meus cumprimentos.

Limito-me a escrever-lhe o que por falta de oportunidade não tinha conseguido ainda, como era meu dever.

Surgiu-me hoje o dia porém.

Lamenta-se por ser pobre. Pobre não é defeito, pois eu também não sou rica, como cita.

Devo dizer-lhe que na data presente só poderei contar comigo, mas com esperanças de um dia possuir alguma coisa, mas não o suficiente para me considerar rica. Como pobre não ambiciono riqueza ainda que se a possuisse manteria os bons sentimentos.

Da sua parte unicamente sei que é descendente de boas famílias mas um tanto ou quanto leviano, coisa própria do homem ou antes dos rapazes de hoje.

Agradeço desde já a sua oferta o que desde já lhe digo que entre nós nada existe, isto é, pois namorar ainda não penso em tal. Considero-me ainda nova para ocupar esses lugares e namoro para passar tempo, também não quero. Estou numa situação que muito aprecio, razão porque quero gozar dela mais algum tempo.

Por último desejo que seja muito feliz nas suas aventuras tanto o quanto desejar.

Subscreve-se

Maria do Céu

Várzea, 28/1/1960”

publicado por carifas às 22:46

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Sábado, 22 de Junho de 2013

O PINTOR

 

Daniel dos Anjos Dias, residente e natural de Salão de Cima, freguesia de Dornes faleceu a  13 de Maio de 2013, com 59 anos de idade, vítima de grave doença.

Desapareceu  uma figura carismática da região, que, pelas suas peculiaridades deixa um vazio a todos que o conheceram.

Com efeito o Daniel deixa marcas que se veiculam na voz de todos os seus familiares, conterrâneos e amigos porque era de facto uma personalidade ìmpar.

Deixava a sua marca por onde passava com a sua boa disposição e os seus ditos jocosos, sempre impulsionados pelo vinho que ingeria em excesso por todas as horas do dia. Quem passassse à sua porta era sempre desafiado para visitar a sua adega.

Apesar disso, sempre que houvesse trabalho, cumpria as suas tarefas profissionais com eficácia  sem se ressentir dos excessos das vésperas.

À sua maneira, terá vivido feliz no seu curto percurso de vida.

Ficam conhecidas, entre outras, as seguintes expressões que utilizava amiúde:

     - “O pintor não é “doudo”” !!!!!!!!

     - “Há-de morar”!!!!!!

     - “O Estiloso”!!!!! (referência ao filho)

     - “A Criatura” !!!!(referência à filha mais nova)

Páz à sua alma.

Os filhos, emocionados, leram-lhe, durante as exéquias, a seguinte mensagem:

 

PAI

 

Partes contra a nossa vontade

Mas ficas ainda nas nossas vidas

Com os ecos do teu viver

Porque deixas bem vivos

Os sinais que gravaste

Na existência das nossas vidas

Partes mas deixas marcas

Que não sairão das nossas memórias

Que a “criatura” cantará

Que o “Estiloso” recordará, e que

Por muitos anos, “Há-de Morar!!

Nos nossos corações

                                                                                                                                              Até logo pai!

publicado por carifas às 18:34

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Terça-feira, 13 de Novembro de 2012

Manuel Augusto Alcobia Granja, vulgo, NECAS

No já longínquo ano de 1943,  nascemos ambos, em Paio Mendes, Fundo da Rua, firmando desde então uma proximidade que gerou afectos e sentimentos que cabem no âmbito das relações amigas de familiares.  

Embora trilhássemos caminhos distintos no labor da subsistência que a vida nos impôs, é sobretudo neste cantinho das nossas raízes, que nos revemos, revivendo, passados quase 70 anos as memórias comuns.

Transponho-o para o meu álbum das boas recordações com uma ligeira descrição que pode pecar por defeito, mas cujo registo o fará recordar.

 

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Lavra, cava, semeia, rega, sacha, colhe, cozinha e come. Aqui está o exemplo de quem sobreviverá a qualquer crise que não seja de pestes.

Com três ralhações e quatro impropérios, desbloqueia qualquer dificuldade com o sentido prático de quem não sabe complicar.

Diz-se o melhor cozinheiro do mundo demonstrando-o na prática com os seus excelentes cozinhados, que oferece, quase impondo-os, a quem esteja por perto.

Frontal, logo por vezes incómodo, nem sempre colhe a simpatia daqueles que o não conhecem bem.

Homem mundano e culti-viajado, descreve os vários pontos do globo que visitou, comparando as virtudes desses lugares à magnificência de Paio Mendes, seu destino preferido.

Lê um livro com a mesma naturalidade com que faz trabalhos mecânicos, de electricidade, canalização, de pinturas ou de agricultura.

Cansa até a quem apenas observa, a determinação colocada em cada tarefa.

Antítese da generalidade dos concidadãos acomodados às circunstâncias que o destino lhe traça subraindo aos apoios sociais os meios de sobrevivência, clone-se, porque já é possivel, a natureza e determinação deste e outros iguais, que inverterão a curva da crise económica de forma irreversível.

Apesar da sua confortável situação económica, conquistada pelos longos anos de trabalho com  competência técnica reconhecida, não se acomoda ao bem estar que os seus proventos lhe permitem.

Circula pelos caminhos de Paios Mendes ora de tractor ora de Mercedes, para ir  à horta ou ao mercado comprar sardinhas, um dos seus paladares preferidos.

Mas também sai de Paio Mendes para ir ali ao Brasil, à Alemanha a Espanha ou qualquer outro destino, como quem vai ali a Ferreira ou a Dornes.

Campeão do contraditório, geralmente expressa opiniões diferenciadas dos seus interlocutores com a convicção de que a sua filosofia de vida está mais de acordo com os parâmetros fixados para a óbvia natureza do comum mortal.

É, com efeito, a imagem do cidadão global

Agora, como nos idos anos 40 do século passado, sinto-me bem com o ambiente de proximidade e convívio que recuperámos, nesta fase de aposentação da actividade profissional, derradeira etapa das nossa vidas.

publicado por carifas às 21:50

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Sexta-feira, 9 de Novembro de 2012

MEDICINA TRADICIONAL - Documento delicioso

Extracto de um documento existente no Arquivo Distrital de Viseu, anexo ao Museu Grão-Vasco.

Documento autêntico, respeitante a um atestado passado por uma parteira de Coira, localidade dos arredores de Viseu, a favor de uma rapariga residente naquela localidade, que, por ter sido vítima de uma difamação e pretendendo casar, recorreu à parteira da terra na falta de um médico, a fim de a mesma, após prévia observação, poder atestar o seu estado de virgindade e assim reabilitar o seu nome.

O referido documento está redigido nos seguintes termos:

 

"Eu Barbara Emilia, parteira que sou de Coira atesto e certufico pula minha 

onra que Maria de Jesus tem as partes fudengas tal e qual como naceu, inceto

umas pequenas noidas negras junto dos montes da crica que a não serem de

nascença sarão purvenientes de marradas de piça. "

 

publicado por carifas às 11:45

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Domingo, 29 de Abril de 2012

PARA MEMÓRIA FUTURA

 

Nasci e cresci no Fundo da Rua na Freguesia de Paio Mendes à quase setenta anos e nunca mais de lá saí. Pelos muitos locais onde circulei, quer em Lisboa, onde vivo, quer nalguns países da europa, onde passeei, quer em áfrica, no serviço militar, sempre senti a necessidade o desejo e a saudade do meu cantinho, que aprendi a estimar como a minha própria vida. Foi ali que aprendi a andar, a falar e a ter sentimentos de relação afectiva do mundo e das pessoas que me rodearam. Aprendi a cultura muito própria dos nossos naturais. Por muito que venhamos a aprender ao longo da vida, nada irá substituir o que assimilámos nos primeiros anos de vida. É como a raiz que sustenta a àrvore que, embora venha a ser podada, moldando-a, mantém a mesma raíz que lhe dá vida.

Tive uma infância feliz e revivo amiúde as incidências dessa fase, que mantenho vivas:

É com nostalgia que recordo as minhas idas à loja do “Catrino” fazer recados à minha mãe. A loja representava naquele tempo uma espécie de disneylândia, tal a variedade de cheiros e de produtos que ali eram expostos para venda. E,

Ir ao Guilhermino Sapateiro levar calçado para arranjo ou tirar as medidas aos pés, colocando-os em cima de uma folha de papel pardo que ele circundava com um lápis para que me fizesse umas botas. A sua oficina era só por si um local de sonho pelas ferramentas estranhas que se observavam. E,

Ver passar o Moleiro de Dornes com o burro carregado de farinha nos seus alforges, que distribuia porta a porta. E,

Ouvir o original toque do Capador em aproximação, para capar os porcos ou porcas, vindo da longínqua Pombeira montado no seu cavalo, geralmente embriagado, embora sempre eficaz na sua função de operador. Se se tratava de um porco, a minha mãe fritava os testículos para uma merenda deliciosa que o capador, sem pressas, também compartilhava. E,

Frequentar a Escola primária com os companheiros da minha geração, descobrindo as letras e os números que os professores que tive, me ensinaram. E,

Ir levar o jantar ao meu pai ao lagar ou ao forno, no inverno e no verão. E,

Caçar pássaros com pescórcias e descobrir ninhos. Apanhar agúdias nos formigueiros ou lagartas nos troços do milho, para servirem de isco. E,

Descobrir uma qualquer roda e fazer uma gancheta para circular com ela, como se fosse um veiculo sofisticado. E,

Ver o Espanhol, contrabandista de tecidos, que aparecia uma vez por ano. Vendia, sobretudo, tecidos de bombasine, serrobeco, sarjas e mitras(boinas) entre outros, que trazia envoltos numa manta em forma de trouxa, que carregava às costas. Era um alentejano simpático, que dormiu algumas vezes no palheiro da casa dos meus avós, depois de aparecer na taberna à noite para solicitar permissão ao meu pai. O facto de o saber a dormir lá fazia-me imaginar as suas aventuras desde as longíquas terras de onde vinha. E,

Viver as matanças de porco que se faziam em minha casa e em casa dos meus tios, uma vez por ano, que eram grandes festas familiares. O meu pai era era o matador e procedia também à desmancha no dia seguinte. O porco ficava pendurado no chambaril até ao dia seguinte para escorrer todo o sangue. Eram dois dias fartos em acepipes. E,

Ouvir, de madrugada, a passagem do carro de bois do Fernando do Daniel para trabalhos de lavoura, repetindo a cada instante a frase com que dirigia a junta de bois: “Cás-tráz-cabano-aí-hoo- Filhos da p......” . E,

Ouvir o meu tio Manel passsar de manhã cedo em direcção ao adro para o mata- bicho  e gritar na janela do meu quarto. “Alevanta-te meu mandrião".  Eram os bons-dias dele. E,

Espreitar a minha tia Augusta na sua passagem semanal com o alguidar de tremoços à cabeça, para a taberna, para receber um punhado deles, poucos, mas que me deliciavam. E,

Esperar pela noite para me sentar ao lume com a minha mãe, aguardando a chegada do meu pai, à luz de uma candeia de azeite. E,

Ouvir, no inverno, a chuva e o vento a baterem no telhado e sentir os pés aquecidos pelo gato que vinha todas as noites dormir à minha cama. E,

Comer as sopas de café com leite ou de almécere ou farinha maizena que a minha mãe deixava junto à lareira, para se manterem quentes, antes de ir aos seus trabalhos. E,

Pedir a benção ao meu pai e aos meus tios, como saudação. Dizia-a de forma mecânica do seguinte modo: “adeus mê pai cetáçabenção”. Só muito depois vim a perceber que deveria dizer: Adeus meu pai, dê-me a sua benção. E,

Percorrer, descalço, a alta velocidade, os percursos para a Renda ou para o Salão de Cima.

Participar nas vindimas e ajudar a pisar as uvas no lagar da adega do meu pai para obter o mosto que se transformaria em vinho. E,

Servir copos de vinho na taberna e ouvir as conversas adultas dos que por ali apareciam. E,

Notar as alterações de comportamento naqueles que se embriegavam. E,

Assistir a zaragatas, por pequenas zangas, provocadas pelos excessos de bebida. E,

Construir um forno de cerâmica, com o meu amigo Necas, à semelhança daquele onde o meu pai trabalhava, para cozer peças em barro que fazíamos com moldes que nós próprios construimos. Ou fazer um telefone com caixas de graxa e fio enrrezinado, que retirava dos foguetes que apanhava quando se realizava a festa de Paio Mendes. E,

Espreitar, de manhã cedo, a possível queda de laranjas para o caminho que passava abaixo do muro alto do terreno onde se encontrava a laranjeira do Sr. Camilio, única neste local, para correr a apanhá-las e deliciar-me com elas. E,

Conviver com homens, que recordo com saudade, com caracteristicas muito particulares, já desaparecidos, mas que se evidenciavam no nosso mundo rural fechado ao conhecimento do que no mundo ia acontecendo. Recordo, particularmente, o Nascimento Nunes, o Manuel Cebola e o António do “Génio”, homens, entre outros, que evidenciavam conhecimentos superiores à generalidade das pessoas. Qualquer deles eram fontes de conhecimento que a minha idade imberbe não absorvia. Só mais tarde os reconheci. Nascimento Nunes, do Soutireira, Nerú ou cara de cão, era um orador nato, que sabia colocar no seu discurso tal intensidade dramática que provocava emoções a quem o ouvia, fazendo inveja às descrições de Aquilino Ribeiro nas cenas rurais do Malhadinhas. Assinante do Diário de Notícias (imagine-se, naquela época) debitava notícias e conhecimentos que embasbacava quem os ouvia. Os jornais tinham para ele duas utilidades. A leitura e a limpeza da navalha com que barbeava os clientes. Foi serrador (profissão já extinta), barbeiro, taberneiro e caçador de raposas que transportava aos ombros de porta em porta para ser recompensado com ovos das galinhas que ficavam a salvo de assaltos às suas capoeiras.

Volto agora, frequentemente à minha primeira vida e não consigo identificar-me com ela. Nada é igual. Muito menos as pessoas.

ccarifas

 

 

 

 

 

publicado por carifas às 19:03

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Domingo, 22 de Abril de 2012

O QUE DIZER

 

 

 

È pouco e muito mais do que me apetece. No entanto esse pouco para mim é muito. Sendo assim, devo calar-me. Porém não dizendo nem o muito nem o pouco, não digo sequer o pouco que preciso dizer. Assim sendo, fico dividido entre o muito e o pouco pela incapacidade de síntese para dizer o muito em muito pouco. Afinal, porquê dizer o que pensamos por pensarmos que tem de ser dito, se apenas repetimos o óbvio.

Tudo está dito por todos.O que está por dizer ainda não é sabido. Quando for dito, todos repetiremos, sem necessidade de repetir o que foi dito. A natureza humana tem hábitos de fala e repete o que outros falaram. Se todos falássemos apenas o que sabemos, só alguns falavam o pouco que sabem.

Atribua-se cansaço à fala para que o que for dito seja apenas o que deve dizer-se.

CCarifas

publicado por carifas às 12:50

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UM CERTO ESTILO ALOURADO

 

“L...reparava com ansiedade que, por sua vez, o esclarecimento também precisava de ser esclarecido. Logo o tomava o medo de que, por falta de rigor, o não acreditassem, de maneira que acrescentava todas as precisões de tempo, lugar e modo que lhe ocorriam. Mas o tempo, lugar e modo têm as suas particularidades, um antes e um depois, um perto e um longe, um seco e um molhado, um limpo e um sujo, um preto e um branco, um rápido e um lento... Havia que escolher de entre as alternativas a mais verdadeira, que só valia sendo bem circunstanciada, com tempo lugar e modo. E se não acreditassem na palavra dele, lá estava Fulano e Beltrano a confirmar. E se esses não se lembrassem, ele avivava as memórias, lembrando o fato castanho de um e a exclamação “ele há cada uma!” de outro, que aliás, tinha proferido num sítio muito determinado que era... mesmo junto a ... logo a seguir... até vinha passando F... o qual se acercou e disse... ao que respondera... e até passou o comboio das nove e... E quanto mais descorria, mais assustado ficava L... Ao receio de que não tivesse sido suficientemente rigoroso e persuasivo, acrescia a consciência de que estava a maçar, de maneira que passava a intercalar um “eu acabo já, é só mais um instante” de dez em dez segundos, e começava a exprimir-se cada vez mais depressa. Mas então sobrevinha a sensação de que todos se haviam já esquecido do que havia dito em primeiro lugar e apressava-se a repeti-lo, de maneira mais enfática, acontecendo que lhe ocorriam entretanto diversos pormenores que enriqueciam a história. E aproveitava a ocasião para corrigir particulares que tinham sido mal contados.

Quem o conhecesse sabia não valer a pena interrompê-lo, mesmo usando artes cortesãs ou rudezas militares. Interpelado a meio do discurso, calar-se-ia humildemente.

Mas enquanto esperava, os sinais de inquietaçãp multiplicavam-se na face e aqueles esgares tornavam-se insuportáveis a quem o olhasse. E ao retomar a palavra, logo na primeira oportunidade, faria tábua rasa de tudo o que entretanto se dissesse e regressaria ao seu próprio discurso anterior, completando-o com os pormenores que, enquanto aguardava, a sua tumultuosa memória desencantara.......

Texto retirado do livro

“Era bom que trocássemos umas ideias sobre o assunto”

Do autor, Mário de Carcalho

publicado por carifas às 12:42

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Sexta-feira, 30 de Setembro de 2011

MULHER CORAGEM

 

Existem neste nosso mundo pessoas que fazem o seu percurso de vida com notoriedade e conhecimento público e outras que sendo notórias, apenas vêm o reconhecimento das suas qualidades no terreiro das suas vidas com eco apenas nos familiares e amigos.

A minha irmã, Maria Augusta dos Santos Nunes Bastos (A Tita) e o Francisco de Sousa Bastos (Chico do Grilo, como é conhecido) celebra no dia 23 de Setembro de 2011 as suas bodas de oiro, de um casamento que resistiu a todas as vicissitudes que estão implícitas ao decurso de uma vida dura e de muito trabalho, acrescida da maternidade, criação e educação dos seus filhos.

Òbviamente oriunda dos Carifas, é porventura a que melhor retrata o espírito que está subjacente à alcunha da nossa família ( alegre, brincalhão, gozão, impertinente).

Não fora  a dramática perda do seu filho mais velho, o grande desgosto da sua vida que a abalou e modificou e manteria ainda a jovialidade que sempre a caracterizou.

Apesar de tudo, ainda alegre e brincalhona com a argúcia de quem, sendo inteligente, sabe brincar respeitando, com a arte pouco comun do bom senso e objectividade do seu discurso.

Generosa e amiga de toda a gente, exerce o saudável hábito de ajudar a quem precisa com o prazer de fazer bem.

Na sua farta casa há sempre um prato de sopa ou um dos seus deliciosos petiscos feitos com as suas mágicas mãos de cozinheira.  Sem ter tido qualquer formação na arte de cozinhar, ela transforma qualquer alimento em cozinhado que faria inveja  a qualquer chefe de cozinha. 

Tem agora o previlégio de ter duas lindas netas, a Joana e a Carolina, que vieram colmatar a sua grande frustação de não ter tido uma filha  e um neto, o Miguel,  elas, filhas do Carlos Miguel e da Silvia, e o Miguel, filho do Zézito e da Isabel. Orgulha-se dos seus filhos por serem homens exemplares e de sucesso.

Prefere andar a pé em detrimento do automóvel, que é um luxo execrável que rouba o prazer de exercer a função de locomoção natural do ser humano que somos. Excurções de terceira idade são manifestções de gente que não sabe distinguir entre o ter e o saber dos prazeres da vida. A melhor excursão que lhe podem proporcionar é percorrer a pé a distância entre a Cagida e Paio Mendes ou qualquer outro percurso que desafie o seu marchar rápido.

Divide, dia a dia, as suas múltiplas tarefas, entre as fainas agrícolas o tratamento de animais e a manutenção dos afazeres domésticos com energia que faz inveja aos mais jovens. Ela executa, dirige, orienta e comanda todo o universo que a rodeia.

Queremos tê-la por muitos anos na intimidade das nossas vidas,  como irmã e como amiga.

Os meus parabéns e um grande beijo de amizade do mano

Ccarifas

publicado por carifas às 13:19

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Quarta-feira, 7 de Setembro de 2011

AVENTURA NAS ESTERCADAS

 

 

 

A natureza humana exercita sentimentos, emoções e sensações que lhe são intrínsecas,  não tabeladas em escalas de valores como um produto qualquer.

Teria 8 ou 9 anos , a viver naturalmente em casa dos meus pais no Fundo da Rua, com a filosofia dos naturais, na fase de aprendizagem própria desta idade, assimilando hábitos e costumes, transmitidos de forma quase genética,

Ainda hoje não consigo lembrar-me de melhor sensação que a vivida nesta aventura. Nem de quando fui a primeira vez a um concerto, ao cinema ou viajar de avião.

Aqui, neste local, a natureza parecia desenvolver-se de forma desordenada, onde cada àrvore empurra outra como  a querer garantir o seu próprio espaço. A vegetação mais forte asfixia a mais fraca, entrelaçando-a.

Esta época ainda era rica de fauna selvagem, sobretudo de aves que caçávamos facilmente com pescórcias, armadilhadas com agúdias ou lagartas dos troncos do milho, até de aves de maior porte, como os Corvos e os Milhafres, este ave de rapina.

Movido pelas pragas ao Milhafre, que ouvia à minha mãe e vizinhas, pelos assaltos que este fazia às suas capoeiras rapinando pintos à ninhada, resolvi fazer justiça pelas minhas próprias mãos provocando o extermínio do maldito Milhafre.

Saltei o ribeiro através de um túnel  formado por silvas e canas, aberto em local onde os muros de pedra distam cerca de um metro entre si, com uma profundidade de outro metro. Esta abertura, parecendo natural, formou-se pela erosão provocada pela passagem de pessoas que, ou iam caçar ou apanhar fruta em àrvores há muito abandonadas que sobreviviam  no meio da vegetação que as envolvia, como  selva cerrada. Também por ali se escapavam os javalis que lá encontram refúgio seguro e poderem visitar os milharais que se cultivam deste lado do ribeiro.

Entrar por esta passagem provocou-me uma forte sensação de aventura, incutindo medos e alusões a mistérios que a dificuldade de movimentação e os muitos indícios de existência de vida selvagem ajuda a construir, reforçado com o sentimento de invasão de propriedade alheia, embora ciente que os donos não me poderiam observar da sua casa que, lá do alto, dominava a quinta em toda a sua extenção, embora a densa vegetação não permitisse observar o interior daquele espaço.

Avancei com grande dificuldade, incomodado pelo constante agarrar das silvas à minha roupa. À medida que avançava mais para o interior aumentava-se-me a curiosidade do desconhecido e obtinha o sentimento do corajoso que quer culminar a aventura com um acto de bravura. Se me vinha alguma sensação de medo, rápidamente projectava na minha mente à zona circundante, que conhecia bem e que por estar tão próxima, depressa alcançaria. Porém, logo ficava arrependido de recorrer a este estratagema para aliviar os medos, porque perdia nesses momentos o espirito de guerreiro de que estava possuido e que só voltava a recuperar quando me tornava a assustar com o barulho provocado por algum insecto, cobra ou pássaro.

A meio do percurso parei para me concentrar e avaliar a situação, não fosse preciso modificar a estratégia da acção.

Olhei em redor e senti um calafrio, quando me apercebi do silêncio que me envolvia e que não notara antes por causa do restolhar que eu provocava ao avançar, afastando vegetação e os ramos das àrvores. Fiquei imóvel algum tempo  até que o Milhafre que nidificava num pinheiro próximo, o visitador habitual das capoeiras da minha mãe, deu sinal da minha presença. Apesar de sinistro, senti-me aliviado pela familiaridade do som.

Decidi então avançar até ao pinheiro onde o Milhafre tinha o seu ninho, afinal o local do objectivo da minha missão.

Já junto do enorme pinheiro que o albergava olhei para cima e tive a sensação que a sua ponta tocava o céu. Os primeiros ramos ficavam a uma altura que eu não conseguia alcançar. Lembrei-me da utilidade que eu escada me daria, mas logo pensei que não seria justo utilizá-la facilitando as coisas. Bom mesmo era conseguir trepar com a força dos braços e das pernas até ao primeiro ramo e a partir daí escadear o pinheiro até ao topo.

Esfreguei as mãos, voltei a olhar para cima e propus-me abraçar o pinheiro. Não tinha porém previsto a inesperada impossibilidade de o abraçar pois era demasiado largo para os meus pequenos braços. Senti nesse momento um misto de tristeza e de alegria disfarçada. Afinal não ia ser por minha culpa que não atacaria o Milhafre. Ele estava no pinheiro errado.

Obrigado a desistir da exterminação do Milhafre, regressei a casa. Contudo, vinha feliz e com sentimento de vaidade por reconher-me a coragem que tivera em pensar levar a cabo tamanha façanha.

Os pobres pintainhos continuariam ainda a correr risco de vida.

Ccarifas

publicado por carifas às 20:32

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Sábado, 19 de Fevereiro de 2011

UM S.MARTINHO EM PAIO MENDES

 

Estamos no dia de S. Martinho, em 1950.

Este tinha sido um ano de farta colheita de uvas e as adegas estavam cheias, como há alguns anos se não via. Sentia-se por isso um forte apelo às tradicionais provas, na expectativa de saber se à quantidade também corresponderia a qualidade. Nada melhor que convidar os amigos para efectuar as provas tradicionais do dia de S. Martinho e saber deles a opinião sobre a “pomada” do ano, embora se saiba que essa coisa de aromas e paladares são coisas reservadas  a frutas.

O Manél Alcobia, ou Manél da Teresa, como era mais conhecido, era homem de horizontes largos, pois tinha experiências de vida invulgares, pouco comuns aos seus iguais daquele tempo, como seja a sua expedição a àfrica, e ao que se diz, até terá participado na prisão do Gungunhana.

Na véspera deslocara-se à Serrada e apanhou uns quilos de castanhas e trouxe de caminho um molho de agulho para fazer o magusto que iria compartilhar com os amigos. Deu ordens à mulher para as trinchar e meter-lhe uma mão de sal da salgadeira.

A seguir ao jantar, cerca das duas horas da tarde, com a samarra pelas costas, desceu as escadas que dão acesso à adega. Ainda vinha a comer a sobremesa. Um naco de toucinho preso na mão esquerda entre o indicador e o polegar e um bocado de pão de milho preso por baixo, na mesma mão, que cortava em pedaços com a navalha na mão direita. Calmamente sentou-se no banco feito de uma tábua de pinho assente em duas pedras, nas extremidades.

Não tardou que chegasse o primeiro conviva. Era o Xico Clemente que morava ali à distância de um grito. De camisa branca, coisa rara por aqui, mas o dia era de festa, salientava-lhe ainda mais o enorme nariz avermelhado e marcado por um sinal negro. Saudou:

- Olá compadre!

- Olá compadre!

Sentou-se no mesmo banco e enquanto falavam do tempo, surgio o Zé Narciso em passo apressado, ofegante, que a subida desde a fonte é ingreme. Homem de grande porte e de falas apressadas parece ter sempre pressa em partir para outro destino, saudou:

- Santas e boas!

- Adeus oh Zé, responderam ambos.

E voltou a falar-se do tempo.

O Artur Granja que morava a meia distância entre o Manél da Teresa e o Zé Narciso, surgiu à saída da azinhaga que passa por detrás da casa do Fona. Em passo calmo e de samarra pelas costas parou antes de atravessar a estrada e procurou, abrindo ligeiramente as pernas para obter rigidez no equilibrio, colar com a língua a mortalha do cigarro de onça que vinha a fazer. Só depois de o acender com o isqueiro a petróleo, avançou em direcção ao local onde os outros se encontravam, com a pressa de quem não tem pressa nenhuma.

- Boa tarde meus senhores!

- Boa tarde!

Logo se avistou à saída da mesma azinhaga, os restantes convidados. Os irmãos Carifas, o Manél e o Joaquim que vinha ao ritmo do irmão Manél amparado com um sacho para facilitar a sua dificuldade de locomoção devido aos calos de que sofria.

- Santas e boas!  disseram ambos.

- Boas tardes!

Bem, meus senhores, como já cá estão todos o melhor será atacar o postigo, senão morremos de sede.

-Já cá tarda, disse o Zé Narciso.

O Manél da Teresa agarrou na verruma e no espicho que tinha feito na véspera e tratou de começar a furar o tonel.

-Passem-me aí esse copo que isto já está a verter até ao postigo. O Zé Narciso foi mais rápido e deu-lhe o copo que rápidamente se encheu com o forte esguicho que saía do barril. Meteu-lhe o espicho para estancar a hemorragia do vinho. O Zé Narciso esvaziou o copo de uma vezada.

- Então Zé, que tal achas o vinho?

- Ora, não é com um copo que se faz uma prova. Volte a enchê-lo que já falamos. Quanto mais de resto é assim mesmo.

- Espera, que os outros também são gente. O melhor é encher a picheira para que não se babe tanto vinho.

Encheu a picheira e começou a servir os restantes compinchas. O primeiro foi o Manél Carifas, que opinou: Cá por mim bebe-se bem. Eu até não sou esquisito. Já tenho bebido pior.

O Xico Clemente que ansiava pela sua vez, foi o seguinte a beber e estalando com a língua disse: Escorrega bem. Se não azedar há-de ser todo bebido.

Passou em seguida o copo ao Artur Granja que o bebeu e, franzindo as sobrancelhas, exclamou: Bem, bem, bem, bem. Deixem passar-lhe o inverno por cima que o há-de acabar de curar.

O Joaquim Carifas, com fama de bom fabricante de vinhos, era opinião a considerar, daí que o Manél da Teresa esperava com curiosidade a sua apreciação.

- Bom, é um vinho encorpado mas a precisar de mais tempo de remanso, que o tempo e o frio tratará dele.

O Zé Narciso, teve finalmente o segundo copo que bebeu, deitando um pouco na palma da mão que esfregou até aquecer. Cheirou as mãos e disse: Tem grau para subir à cabeça.

- Oh! Pessoal, rematou o Manél da Teresa, vamos lá para fora acender o agulho e assar as castanhas para fazer boca para mais uns copos.

Todos se dirigiram para o terreiro. Foram ao monte da lenha e tiraram, cada um, um cepo, que levaram para junto do agulho, onde se sentarem.

Enquanto as castanhas assavam bebeu-se mais uma rodada. Uma que não fora trinchada rebentou com grande estrondo e na pausa que se seguiu, alguém comentou: - Já abriu a caça. Todos se riram.

Com a ponta das botas cardadas iam puxando as castanhas para fora do agulho e com as mãos já negras da descasca iam sujando e embaciando os copos.

Durante a tarde o Manél da Teresa como bom anfitrião não parava de reeencher a picheira, pois era preciso que todos fossem satisfeitos.

Pelo sol posto já com os corpos quentes, despediram-se, deixando convite para visitaren as suas adegas, ficando apenas o Xico Clemente que morava ali mesmo ao lado. Os outros seguiram ladeira abaixo, todos juntos, que o caminho era o mesmo até à fonte. Atrás deles seguia o Manél Carifas abrindo cada passo com o cuidado de parecer não querer nem desequilibrar-se nem querer tocar com os pés no chão.

                                                                                                                  Ccarifas

publicado por carifas às 20:45

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